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A Realização e Supressão da Religião


A religião sem dúvida alguma supera todas as outras atividades humanas em quantidade e variedade de besteira pura. Se considerarmos ainda seu papel como cúmplice da dominação de classe ao longo da história, não é de se admirar que trouxe para si o desprezo e o ódio de um número cada vez maior de pessoas, em particular dos revolucionários.

Os situacionistas recomeçaram a crítica radical à religião, que foi abandonada pela esquerda, e extende-a a suas formas modernas e secularizadas — o espetáculo, sacrifício leal aos líderes ou à ideologia, etc. Mas sua fixação a uma posição não-dialética sobre a religião refletiu e reforçou certos defeitos no movimento sistuacionista. Desenvolvendo-se fora da perspectiva de que para ser substituída, a arte deve ser tanto realizada quanto supressa, a teoria situacionista falhou em ver que uma posição análoga foi reclamada acerca da religião.

A religião é a expressão alienada do qualitativo, a “fantástica realização do homem”. O movimento revolucionário deve opor-se à religião, mas não em preferência a um amoralismo vulgar ou um senso comum filistino. Deve tomar sua posição sobre o outro lado da religião. Não inferior a ela, mas acima.

Quando a religião é tratada pelos situacionistas, é geralmente trazida em apenas seus aspectos mais superficiais e espetaculares, como um espantalho sendo desdenhosamente refutado por aqueles incapazes de refutar qualquer outra coisa. Excepcionalmente, eles talvez vagamente aceitem uma Boêmia ou uma ordem de Espíritos Livres em seu panteão de “grandes”, porque eles fizeram menção a serem favoráveis à Internacional Situacionista. Mas nunca qualquer coisa que os desafia pessoalmente. Questões que merecem exame e debate são ignoradas porque elas foram monopolizadas pela religião ou aconteceu de serem exprimidas parcialmente em termos religiosos. Alguns podem até sentir a inadequação de tal rejeição, mas não estão certos sobre de que outra forma operar em terrenos tabu, daí então eles também não dizem nada, ou voltam-se para as banalidades. Para quem quer “substituir todas as aquisições culturais” e realizar o “homem total”, os situacionistas são muitas vezes surpreendentemente ignorantes sobre as mais elementares características da religião.

Não é uma questão de aderir a uma dúzia de religiões para mexer com nossa perspectiva, criar um situacionismo “com uma face humana”. Não se humaniza uma ferramenta, um método crítico. (A noção de “Marxismo humanizador” apenas revela a natureza ideológica do marxismo em questão.) É uma questão de examinar os pontos cegos e a rigidez dogmática que desenvolveram-se de uma crítica agressiva à religião amplamente justificável. É precisamente quando uma posição teórica é vitoriosa que se torna tanto possível quanto necessário criticá-la com mais rigor. A áspera fórmula que era provocativa em um contexto anterior se torna uma base para novas ideologias. Um avanço qualitativo é muitas vezes acompanhado por uma regressão aparentemente paradoxal.

Não é suficiente explicar a religião por seu papel social ou desenvolvimento histórico. O conteúdo que é expressado nas formas religiosas devem ser descobertos. Porque os revolucionários não chegaram realmente a um acordo com a religião, sua continuidade volta a assombrá-los. Porque a crítica a ela se mantém abstrata, superficial, de um materialismo vulgar, a religião continuamente engendra novas formas de si mesma, mesmo entre aqueles que eram anteriormente opostos a ela por todas as corretas razões “materialistas”. Os situacionistas podem desdenhosamente observar que “todas as Igrejas estão decompondo-se” e não notar que nós estamos testemunhando também, precisamente em países industrialmente mais avançados, a proliferação de milhares de religiões e neoreligiões. Cada nova manifestação religiosa é uma marca do fracasso da teoria radical em expressar o significado oculto, autêntico, que é procurado por essas formas.

Religião inclui vários fenômenos divergentes e contraditórios. Por trás de seus aspectos puramente apologéticos, ela fornece rituais esteticamente atraentes; desafios morais; formas de contemplação que “recentram”; princípios organizados para a vida de alguém; comunicação raramente encontrada no mundo secular; etc. Ao explodir essa aglomeração, a revolução burguesa não destruiu a religião mas serviu a uma extensão para separar seus diversos aspectos. Os elementos da religião que foram originalmente práticas são voltados para si mesmos e requerem ser assim uma vez mais, ou senão desaparecer. Mas essa experimentação popular não é apenas um reflexo da decomposição social, é um fator muito positivo no presente movimento revolucionário, a expressão generalizada de pessoas tentando ser donas de suas próprias vidas. A teoria situacionista oscilou entre a visão de pessoas totalmente alienadas irrompendo-se num belo dia com a liberação de toda sua raiva e criatividade reprimidas, e aquela das microsociedades de revolucionários já vivendo de acordo com as exigências mais radicais. Ela fracassou o suficientemente para lidar com os experimentos mais ambíguos sobre as margens entre a recuperação e a radicalidade onde as contradições são expressas e trabalhadas; deixando-os para a recuperação que aparentemente confirma sua posição. Não é uma questão de ser mais tolerante com essas experiências, mas de examiná-las e criticá-las mais minuciosamente ao invés de desdenhosamente rejeitá-las.

Enquanto desenvolvermos uma crítica mais radicail e substancial à religião, poderemos encarar intervenções sobre terrenos religiosos análogos àqueles do início da Internacional Situacionista sobre terrenos artísticos e intelectuais; atacar uma neoreligião, por exemplo, por não ir longe o suficiente em seus próprios parâmetros, por não ser, por assim dizer, “religiosa” o bastante, e não apenas a partir das perspectivas “materialistas” clássicas.

Esquece-se muitas vezes que a teoria revolucionária não é baseada na preferência ou no princípio, mas na experiência do movimento revolucionário. A base da crítica do “sacrifício”, por exemplo, não é que deva-se ser egoísta a princípio — de que é algo ruim ser altruísta, etc. — mas basea-se a partir da observação da tendência do sacrifício e da ideologia do sacrifício como fatores importante na manutenção da hierarquia e exploração. Que há uma tendência na presente atividade revolucionária de ser interessante e agradável, é meramente um feliz acidente histórico; e que ser uma ferramenta da manipulação política é não apenas desagradável, mas também desestratégico. Os situacionistas estavam certos em colocar e afirmar os divertidos aspectos das lutas radicais e os aspectos radicais da diversão, ações aparentemente insignificantes (vandalismo, etc.). Mas as coinciências dessas e de outras observações levaram muitas pessoas à atraente conclusão, senão bastante lógica, de que a atividade revolucionária é por definição prazeirosa; ou mesmo que o prazer é por definição revolucionário. O problema é então como confrontar aquelas situações onde o prazer imediato não coincide automaticamente com as necessidades revolucionárias: perseguir meios para juntar os dois lados (desvio afetivo) mas não dissimular as contradições onde não é possível.

Os mesmos situacionistas que colocam a estupidez desse esquerdismo que reduz a luta dos trabalhadores a questões puramente econômicas, em contrapartida reduzem a revolução a questões puramente “egoístas” quando insistem que pessoas estão — ou ao menos deveriam estar — apenas lutando “por si mesmas”, “pelo prazer de lutar”, etc. Suas exortações em “recusar o sacrifício” substituem toda análise ou levam a falsas análises. Denuncia-se o maoísmo, por exemplo, meramente por ser baseado no “sacrifício”, e não se fala dos saudáveis e generosos sentimentos comunitários, cuja recuperação tem origem em grande parte no apelo maoísta. O que é contrarevolucionário sobre o maoísmo não é o sacrifício em si, mas o tipo de sacrifício e o uso que se faz dele. As pessoas têm não apenas desejado, quando necessário, suportar a pobreza, prisão e outras dores, pela revolução, como têm muitas vezes até mesmo o feito com alegria, deixando o conforto material como sendo relativamente secundário, encontrando mais satisfação no conhecimento da eficácia e na beleza de seus atos. Existem vitórias que não são visíveis para todos, momentos quando alguém pode ver que “já se venceu” uma batalha mesmo que as coisas possam superficialmente parecer as mesmas de antes.

É necessário distinguir entre uma devoção de princícios a uma causa, que pode envolver algum sacrifício do interesse egoísta mais estreito de alguém, e a degradação antes de uma causa que demanda o sacrifício do “ser próprio” de alguém — sua integridade, honestidade, grandeza de espírito.

Ao enfatizar exclusivamente os prazeres imediatos a serem encontrados na atividade revolucionária — exceto o entusiasmo ingênuo ou com o objetivo de uma sedução política ou sexual — os situacionistas estabeleceram-se acima das queixas daqueles que rejeitam-os em sua base, sendo desapontados em suas expectativas de entretenimento.

É compreensível o porquê do antisacrifício ser um pilar da ideologia situacionista tão ausente de críticas. Primeiro, ele fornece uma excelente defesa contra considerações sobre si ou outros: pode-se justificar vários fracassos simplesmente dizendo que não movimentou-se apaixonadamente para fazer isto ou aquilo. Segundo, aquele que é um revolucionário apenas por seu prazer poderia presumivelmente ser indiferente ou mesmo contrarevolucionário quando acontecer de sê-lo mais conveniente; por isso ele agradece, afim de previnir esse embaraçoso corolário de ser notado, postular que a atividade revolucionária é sempre automaticamente prazeirosa.

O próprio sucesso da Internacional Situacionista contribuiu para a aparente justificativa de um anacronismo posto decorrente de um acidente histórico de suas origens (for da vanguarda cultural francesa, etc.), e mesmo talvez de suas personalidades de alguns de seus membros determinantes. O tom agressivo dos situacionistas reflete a recentralização da revolução no indivíduo real singular comprometivo com nada fora de si mesmo. Em contraste com o militante, o situacionista é naturalmente ligeiro ao reagir contra a manipulação. Apesar de tal atitude ser bem o contrário do elitismo, é facilmente capaz de tornar-se assim em relação àqueles que faltam essa autonomia ou respeito próprio. Tendo experienciado a exitação de ser dono da própria história (ou ao menos tendo identificado-se com aqueles que são), ele chega a uma impaciência e desprezo pela timidez em vigor. É só um passo desse bem compreensível sentimento para uma postura neoaristocrática. Essa postura nem sempre é uma marca das “aspirações hierárquicas” provebiais; ao invés, frustrado pela dificuldade em afetar visivelmente a sociedade dominante, o situacionista busca a compensação em um menos visível efeito no meio revolucionário, o de ser reconhecido nesse como sendo correto, como tendo realizado boas ações radicais. Seu egoísmo torna-se egotismo — narcisismo socializado. Ele começa a sentir que merece um respeito incomum por ser tão incomummente antihierárquico. Ele arrogantemente defende sua “honra” ou “dignidade” quando alguém tem o descaramento para criticá-lo, e ele encontra na Internacional Situacionista e seus precedentes um estilo que cai bem com essa nova maneira de ver a si mesmo.

Um descontentamento intuitivo com esse estilo egotista está na fonte de muitas das discussões expressadas de algum jeito enganosamente nos termos de “feminidade” e “maculinidade”. Não há nada intrinsecamente “masculino”, por exemplo, sobre escrever; mulheres precisam aprender como fazê-lo se não quiserem permanecer impotentes. O que elas não precisam aprender é a postura neoaristocrática sem sentido que tem caracterizado predominantemente a expressão situacionista marculina.

Alguns situacionistas não tiveram nenhuma inclinação natural particular para essa postura. Mas tem sido difícil isolá-la e portanto evitá-la, já que acusações de “arrogância”, “elitismo”, etc., são muitas vezes equivocadamente apontadas a precisamente os aspectos mais incisivos da prática situacionista. É difícil não se sentir superior sobre ter alguma pseudocrítica endereçado a ti que tu ouviste e refutaste centenas de vezes antes. Além de que, uma falsa modéstia pode ser enganadora. Existem algumas coisas que tu não podes deixar passar. Embora um revolucionário não deva pensar que ele (ou seu grupo) é essencial para o movimento e deve ser, portanto, defendido com todos os meios, ele deve defender suas ações na medida em que sente que elas refletem aspectos importantes daquele movimento. Não é uma questão de secretamente guardar a modéstia e outras virtudes que Deus verá e por fim comprensará, mas de participar em um movimento global cuja própria essência é a comunicação.

Esse cenário situacionista, fornecendo um campo favorável de jogos por vaiedade e em grupo, tem atraído muitas pessoas com muito pouco a fazer com o projeto revolucionário; pessoas que em outras circunstâncias teriam se tornado almofadinhas, dândis, intriguistas sociais, diletantes culturais, puxa-sacos. É verdade que o movimento situacionista reagiu contra muitos desse elementos com um vigor que foi talvez inesperado para eles, e que desencorajou muitos outros pensar que poderiam divertir a si mesmo lá impune. Mas isso frequentemente tem ocorrido não por causa de seu papel pretensioso, mas porque eles não mantiveram esse papel com credibilidade o bastante.

Reciprocamente, o cenário situacionista tendeu a repelir outros, de várias maneiras, sérios indivíduos que sentiram que esse egoísmo pretensioso era um anacronismo muito longe de qualquer revolução pela qual que teriam se interessado.Vendo essa pretensiosidade aparentemente ligada com a radicalidade incisiva dos situacionistas, muitas pessoas rejeitaram facilmente os dois de uma só vez, escolhendo outras atividades que, enquanto mais limitadas, pelo menos evitavam essa postura repugnante. O movimento que somou-se à atividade radical de apelo antitrabalho, antisacrifício, terminou por repelir pessoas que não tinham desejo em sacrificar a si mesmas pelo papel reacionário situacionista.

O situacionismo egoísta possui uma concepção mais filistina de libertação humana. Seu egoísmo é apenas a inversão da autodegradação. Ele advoga pelo “jogo” em um sentido juvenil, como se a mera quebra de restrições fosse automativamente produtora de prazer. Ao evocar a criança, ele está simpatizando-se não apenas com a rebeliosidade mas também com sua impaciência e irresponsabilidade. Sua crítica ao “amor romântico” baseia-se não apenas de uma percepção de suas ilusões e possessividade neurótica, mas também de uma simples ignorância acerca do amor e suas possibilidades. É menos a comunidade humana alienada que o incomoda, do que as coisas que o impedem de participar dela. Ele sonha mesmo é, por trás da verborragia situacionista, com uma sociedade espetacular cibernetizada que levaria-o a seus caprichos em formas mais sofisticadas e variadas. Ele é ainda um consumidor, e um muito conspícuo, em sua frenética insistência por “prazer sem limites”, a gratificação de uma “infinita multiplicação de desejos”. Se ele desgosta da “passividade” é menos por ao ser forçado a ela restringe-se seus impulsos criativos do que por ele ser um viciado na atividade nervosa e não saber o que fazer consigo mesmo se não estiver rodeado por muitas distrações. De contemplação como momento de atividade, ou de solidão como momento de diálogo, ele nada sabe. Para todos ele fala sobre “autonomia”, falta-lhe coragem para agir sem se preocupar com o que os outros vão pensar dele. Não é a vida que ele leva a sério, mas seu ego.

A teoria crítica não apresenta uma verdade fixa, “objetiva”. É um assalto, uma formulação abstraída, simplificada e levada ao extremo. O princípio é, “Se o calçado serve, calce-o”: as pessoas são obrigadas a perguntar a si mesmas qual o alcance da verdade da crítica e o que elas irão fazer sobre isso. Aqueles que desejam evadir do problema irão queixar-se sobre a crítica como sendo injustamente unilateral, não apresentando todo o quadro. Reciprocamente, o revolucionário dialeticamente ignorante que deseja afirmar seu extremismo irá confirmar a crítica (contanto que não esteja contra ele) como sendo uma avaliação objetiva e balanciada.

Muito da teoria revolucionária sem sentido baseia-se no fato de que em um meio onde a “radicalidade” é a base do prestígio, tem-se um interesse em fazer afirmações cada vez mais extremistas e em evitar qualquer coisa que possa ser tomada para refletir um enfraquecimento da intransigência de alguém relativa a coisas ruins oficiais. Assim os situacionistas parecerão mais favoráveis à diversão ou a aspirações eróticas (“é apenas necessário que eles sigam suas implicações mais radicais”, etc.) enquanto repudiarem aspirações morais com insultos, embora esses não sejam mais ambíguos do que aqueles.

Em reação exagerada contra a complicidade geral da moralidade na sociedade dominante, situacionistas frequentemente identificam-se com a imagem de seus inimigos e exibem sua própria “imoralidade” ou “criminalidade”. Tal identificação é não apenas infantil, é virtualmente insignificante nesses dias quando um libertismo irresponsável é um dos mais aceitos e exaltados modos de vida (embora a realidade usualmente retarda muito atrás da imagem). Foi a burguesia que denunciou o Manifesto Comunista de não ter “deixado nenhum outro nexo entre homem e homem senão o nu interesse pessoal”. Se usarmos os trabalhos de um Sade — a figura da alienação humana em pessoa — ou de um Maquiavel, não são tanto guias para conduzir nossas relações, como sinceras expressões pessoais incomuns da sociedade burguesa.

A ideologia egoísta, antimoralista contribuiu sem dúvida para a quantidade de má-fé e inutilmente rabugentos rompimentos no meio situacionista. Tenha certeza, os situacionistas são muitas vezes pessoas bem agradáveis; mas isso é virtualmente apesar de todo o seu ambiente ideológico. Já vi situacionistas se envergonharem e praticamente desculparem-se por terem feito algum ato bondoso. (“Não foi sacrifício.”) Qualquer bondade espontânea que tiverem danifica sua teoria. O vocabulário ético básico é invertido, confundido e esquecido.

O fato de alguém dificilmente usar uma palavra como “bondade” sem soar sentimental é uma medida da alienação dessa sociedade e sua oposição. As noções de “virtudes” são muito ambíguas para serem usadas sem serem criticadas e precisadas, mas assim são seus opostos. Conceitos ético não devem ser largados ao inimigo sem uma luta; eles devem ser contestados.

Muito do que faz das pessoas insatisfeitas com suas vida é sua própria pobreza moral. Elas são encorajadas de todos os lados a serem más, fúteis, vingativas, rancorosas, covardes, avarentas, invejosas, desonestas, mesquinhas, etc. Que essa pressão do sistema remove muito da culpa por esses vícios não torna mesmos desagradável ser possuído por eles. Uma razão importante para a propagação de movimentos religiosos é a de que eles conversam com essa inquietude moral, inspirando pessoas a certas práticas éticas que fornecem-os com a paz de uma boa consciência, a satisfação de dizer que acreditam a agem sobre isso (aquela unidade de pensamento e prática pela qual são chamados de “fanáticos”).

O movimento revolucionário, também, deve ser capaz de conversar com essa inquietude moral, não oferecendo um confortável e fixo conjunto de regras para comportamento, mas mostrando que o projeto revolucionário é o foco presente do significado, o terreno da mais coerente expressão de compaixão; um terreno onde indivíduos devem ter a coragem em fazer as melhores escolhas que podem e seguí-las adiante, sem reprimir suas consequências ruins mas evitando a inútil culpa.

O ato compassivo não é revolucionário em si mesmo, mas uma superação momentânea de relações sociais mercantilizadas. Não é o objetivo, mas da mesma natureza do objetivo. Deve-se confessar sua própria limitação. Quando se torna satisfeito consigo mesmo, foi perdida sua compaixão.

Qual o sentido de evocações líricas de uma vingança eventual sobre burocratas, capitalistas, policiais, padres, sociólogos, etc.? Elas servem para compensar a falta de substância de um texto e usualmente nem mesmo refletem seriamente os sentimentos do autor. É uma velha banalidade estratégica de que se o inimigo sabe que ele irá inevitavelmente ser morto de qualquer forma, ele irá lutar até o fim ao invés de se render. Não é, naturalmente, uma questão de ser não-violento, mais do que violento, por princípio. Aqueles que violentamente defendem o sistema trazem a violência contra si mesmo. Na verdade é notável como são magnânimas as revoluções proletárias. A vingança foi usualmente limitada a alguns ataques espontâneos contra torturadores, policiais ou membros da hierarquia que tem sido notoriamente responsáveis por atos cruéis, e rapidamente retrocedeu. É necessário distinguir entre a defesa dos “excessos” populares e a advocacia deles como táticas essenciais. O movimento revolucionário não tem qualquer interesse em vingança; nem em interferir com ela.

É bem sabido que o Taoísmo e Zen inspiraram muitos aspectos das artes marciais orientis: a superação da consciência do ego, para evitar ansiedade que poderia interferir com ações lúdicas; não-resistência, para voltar a força do oponente contra ele mesmo ao invés de confrontar-lhe diretamente; concentração relaxada, para não desperdiçar energia mas converter toda aquela força em foco preciso no momento do impacto. É provável que a experiência religiosa possa ser esboçada de forma análoga para enriquecer taticamente aquela a arte marcial definitiva que é a teórico-prática revolucionária moderna. De qualquer modo, a revolução proletária tem pouco em comum com a guerra clássica, sendo menos uma questão de duas forças similares confrontando diretamente uma a outra do que uma esmagadora maioria se tornando consciente do que poderia ser ao tempo que se realizasse. Nos países mais avançados o sucesso de um movimento tem geralmente dependido mais de sua radicalidade, e portanto sua contagiosidade, do que do número de armas que poderia comandar. (Se o movimento for generalizado o suficiente, o exército cobrirá, etc.; se não for, armas sozinhas não bastarão, a menos que seja para trazer para uma minoria um coup d’état.)

É necessário reexaminar as experiências dos movimentos radicais não-violentos religiosos ou humanísticos. Seus defeitos são inúmeros e evidentes: sua abstrata afirmação da “humanidade” é uma afirmação da humanidade alienada. Sua fé abstrata na boa vontade do homem leva à confiança na moral dos governantes que influenciam e na promoção de “compreensão” mútua ao invés de compreensão radical. Seus apelos a leis morais transcendentes reforçam a habilidade do sistema para fazer o mesmo. Suas vitórias ganhas empunhando a economia como uma arma são ao mesmo tempo uma vitória para a economia. Suas lutas não-violentas ainda dependem a ameaça pela força, eles apenas evitam ser os agentes diretos dela, deslocando seu uso para a “opinião pública” e assim usualmente em análise final para o Estado. Seus atos exemplares muitas vezes tornam-se gestos meramente simbólicos permitindo todos os lados a continuarem como antes, mas com as tensões relaxadas, consciência aliviada por ter “desbafado”, “sido fiel a seus princípios”. Identificado-se com Gandh e Martin Luther King, o espectador tem uma racionalização por desprezar outros que atacam a alienação menos fervorosamente; e por ele mesmo fazer nada porque, pessoas bem-intencionadas sendo encontradas dos dois lados, a situação é muito “complexa”. Esses e outros defeitos foram expostos em teoria e exporam a si mesmos em prática por um longo tempo. Não é mais uma questão de revenir a fome de poder, crueldade e corrupção dos governantes com advertências, mas suprimindo o sistema em que tais “abusos” podem existir.

Não obstante, esses movimentos tem vezes conquistado sucessos notáveis. Começando com algumas intervenções exemplares, eles propagaram como fogo e desacreditaram profundamente o sistema e ideologia dominante. Em seu melhor eles usaram — e muitas vezes deram origem a — táticas bastante radicais, contando com a divulgação contagiosa da verdade, do qualitativo, como sua arma fundamental. Suas práticas de comunidade envergonham outros meios radicais, e eles tem muitas vezes sido mais explícitos acerca de seus objetivos e as dificuldades em alcançá-los do que os movimentos mais “avançados”.

Os situacionistas adotaram uma visão espetacular da história revolucionária ao fixar nela seus momentos mais visíveis, diretos, “avançados”. Muitas vezes esses momentos devem muito de seu momentum à longa influência preparatória de correntes mais silenciosas e sutis. Frequentemente eles estavam mais “avançado” meramente porque uma circunstância externa acidental os forçou a formas e ações radicais. Frequentemente falharam porque não sabiam muito bem o que estavam fazendo ou o que queriam.

Movimentos revolucionários, bem como os religiosos, sempre tenderam a elevar a divisão moral do labor. Demandas irrealistas, quase-terroristas, intimidam as massas ao ponto de adorar ao invés de emular os propagadores, e com prazer largam completa participação àqueles com qualidades e dedicação aparentemente necessárias para tal. O revolucionário deve rivalizar e desmistificar a aparente extradiordinariedade de quaisquer méritos que possa ter, enquanto protegendo-se contra sentir-se ou ver-se superior por causa de sua modéstia conspícua. Ele deve ser não tanto admirável como exemplar.

A crítica radical contínua tem sido um fator chave no poder subversivo dos situacionistas; mas seu egoísmo previniu-lhes de trazer essa tática ao limite. Cercados por tada a verborragia sobre a “subjetividade radical” e “mestres sem escravos”, o situacionista não aprende a ser auto-crítico. Ele concentra-se exclusivamente nos erros dos outros, e sua facilidade nesse método defensivo reforça seu papel “tranquilo”. Falhando em acolher as críticas sobre si próprio, ele mutila sua atividade; e quando alguma crítica finalmente penetra por causa de suas consequências práticas, ele pode ser tão traumatizado quanto toda a abandonada atividade revolucionária, retendo de sua experiência apenas um rancor contra seus críticos.

Em contraste, o revolucionárop que acolhe a crítica tem uma grande flexibilidade tática. Confrontado com uma crítica sobre si próprio, ele pode “agressivamente” apoderar-se de seus pontos mais fracos, refutando-os ao demonstrar suas contradições e suposições ocultas; ou ele pode tomar uma posição de “não-resistência” e apoderar-se de seus argumentos mais fortes como ponto de partida, transformando a crítica ao aceitá-la em um contexto mais profundo do que era pretendido. Mesmo se o saldo de “correções” estiver esmagadoramente a seu lado, ele pode escolher concentrar-se em alguns erros sutis próprios ao invés de tocar em erros mais óbvios de outros. Ele não critica o mais criticável, mas o mais essencial. Ele usa a si mesmo como um meio de abordar questões mais genéricas. Ao se envorganhar, envergonha outros. Quanto mais concretamente e radicalmente um erro é exposto, mais difícil é para os outros evitar confrontações similares consigo mesmos. Mesmo aqueles alegres no começo, pela aparente queda de um inimigo em algum tipo de exibicionismo masoquista, logo descobrem sua vitória ser oca. Ao sacrificar a sua imagem, o revolucionário suprimi a imagem dos outros, seja o efeito expô-los ou envergolhá-los. Sua estratégia difere daquela de “subverter com amor seu inimigo” não necerrariamente amando menos, mas tendo mais coerência em sua expressão. Ele pode ser cruel com todo um papel ou ideologia ao passo que ama a pessoa apanhada nele. Se as pessoas são trazidas para uma profunda, talvez traumática, confrontação consigo mesmas, ele pouco se importa que eles momentaneamente pensam que ele é uma pessoa suja que só faz essas coisas por maldade. Ele deseja provocar os outros para a participação, mesmo se apenas ao esboçá-la em um ataque público a si.

Nós precisamos desenvolver um novo estilo, um estilo que mantenha a mordacidade dos situacionistas mas com uma fervorosidade e humuldade que deixa de lado seus desisteressantes jogos de ego. Futilidade é sempre contrarevolucionária. Começa contigo mesmo, camarada, mas não para aí.

KEN KNABB
Março de 1977

 


Tradução do Coletivo Protopia. Versão original: The Realization and Suppression of Religion.

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